Estudantes estão sendo orientados a escrever redações citando autores e adotando perspectivas caras à esquerda para obter notas altas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). A tendência suscita controvérsias sobre a falta de objetividade do exame e a liberdade de pensamento dos alunos.
A orientação, em muitos casos, não parte de preferências ideológicas dos professores de redação, mas da intenção de melhorar o resultado dos alunos e da constatação de que determinadas cosmovisões tendem a agradar mais aos corretores da prova. A alusão a certos autores é vista como atalho para uma boa nota.
Uma das estratégias sugeridas por professores é adotar o que se tem chamado de “repertório coringa”: autores e citações que valem para praticamente qualquer situação e que dão bons resultados com os corretores da prova. Entre as sugestões de repertório mais mencionadas estão ideólogos da esquerda radical como o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), a intelectual francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) e a filósofa brasileira Djamila Ribeiro.
Esta última, aliás, virou figura frequente entre as recomendações de repertório coringa, especialmente por causa de seu livro “Pequeno Manual Antirracista” (2019). Em comentários de professores populares nas redes sobre a redação deste ano – cujo tema era “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” –, uma citação a Djamila foi tratada praticamente como resposta certa para atender à demanda do Enem de apresentar argumentos “com repertório sociocultural”.
Na segunda-feira (6), um professor de redação com quase 200 mil seguidores no Instagram postou uma foto de Djamila acompanhada da legenda “a grande mulher que salvou a redação de muita gente”. Alguns usuários demonstraram preocupação por não terem mencionado a filósofa e perguntaram qual seria a citação dela que se encaixaria no tema de 2023. Outros comemoravam o fato de tê-la usado como referência.
“Eu useeeeei”, comentou uma usuária do Instagram. “Iniciei minha introdução com ela”, celebrou outra. “Queria citar ela [sic], mas esqueci como era a citação”, lamentou um internauta, usando emoji de choro. “OBRIGADO DJAMILA RIBEIRO [sic]”, escreveu, com emojis de corações, outro usuário.
A citação a Djamila que muitos estudantes usaram foi: “É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade”. A frase figura em diversos conteúdos educacionais para quem vai fazer o Enem, e é frequentemente mencionada como repertório coringa para abordar temas relacionados ao conceito de “invisibilidade”.
Outras figuras frequentes nas recomendações de repertório coringa são o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), o jornalista brasileiro Gilberto Dimenstein (1956-2020) e a artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954). A escolha dessas personalidades não é aleatória: todas elas já figuraram em redações nota 1000 do Enem de provas passadas.
Alunos e professores que discordam das teses de esquerda são obrigados a forjar opiniões
A exigência de uma redação que atenda a moldes ideológicos torna mais difícil a vida de alunos e professores cujas ideias não coadunam com esses moldes.
O escritor e professor Fábio Gonçalves, que dá aulas virtuais e já lecionou redação para alunos de ensino médio, afirma que precisa “mostrar aos alunos como funciona o vestibular” e dizer que eles terão mais chances caso “esquerdizem no texto”.
“Toda a preparação para o vestibular exige que os alunos adotem uma cosmovisão esquerdista, progressista, comunista, como queiram chamar”, observa. “Daí que seja muito difícil o aluno, em trinta linhas e pressionado pelo tempo, defender uma tese que fuja do senso comum ideológico. Periga soar incompreensível para os corretores – também eles, como não podia deixar de ser, condicionados pela cartilha esquerdista.”
Ainda que, em teoria, as visões de mundo do aluno não devessem ser determinantes para a nota final, alguns critérios do Enem tendem a tornar a correção dos textos mais subjetiva. Entre as cinco competências exigidas na redação está, por exemplo, a de apresentar propostas para solucionar problemas sociais respeitando os direitos humanos.
Gonçalves exemplifica como isso pode favorecer a ideologização: no ano passado, quando a proposta de redação foi “Os desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”, o caminho mais fácil era aderir à tese do genocídio indígena por parte dos “europeus malvados”. Ao apresentar propostas para reparar o dano causado, a demarcação de terras indígenas seria a solução mais fácil para o estudante.
O professor critica a própria ideia de exigir soluções a problemas sociais tão complexos em uma redação de vestibular. “Para apenas sondar uma solução razoável para essas questões seriam necessários anos de estudos, reflexões, conversas etc. Aliás, quem no Senado brasileiro sabe resolver essas encrencas? Acho os temas, especialmente do Enem, abomináveis. Uma coisa sem cabimento”, comenta.
Para ele, a tendência vigente no ensino brasileiro de demandar textos argumentativos dos estudantes é uma subversão da educação. “Normalmente os alunos já começam os estudos de escrita pelos textos argumentativos. Tradicionalmente, porém, essa era a última etapa. Antes, o aluno aprendia a descrever objetos, pessoas, bichos e paisagens; depois a narrar pequenos episódios, a escrever cartas, a formular pequenos diálogos. Depois de exaustivo treinamento em gêneros textuais mais simples é que o aluno partia para a redação retórica”, observa. “Daí se espera que um aluno incapaz de descrever o próprio quarto ou a mesa do café da manhã não só disserte sobre os problemas sociais mais cabeludos como arrume um jeito de solucioná-los. Dá para acreditar numa coisa dessas?”
Para estudantes que não aderem à cartilha esquerdista, diante das exigências da redação do Enem, a saída tem sido forjar uma opinião para agradar aos corretores.
Um aluno de ensino médio consultado pela reportagem da Gazeta do Povo, que não será identificado, diz que seus professores “orientam a escrever o que querem ler”. Na redação do Enem deste ano, ele diz que citou o machismo estrutural como um dos motivos para a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher, por acreditar que isso poderia ajudá-lo a obter uma nota mais alta. No mundo real, ele discorda da tese.
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