O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está engajado nas tratativas do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para fazer transações comerciais sem o uso do dólar. A chamada “desdolarização”, uma bandeira levantada especialmente pela China, já foi defendida pelo presidente e por Dilma Rousseff, que atualmente comanda o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, o Banco dos Brics). O Brasil, porém, tem quase 90% das suas exportações e importações negociadas em dólar.
As discussões sobre uma estratégia de negociações sem dólar têm sido pautadas sobretudo pela China. Uma dependência menor da moeda é um dos grandes objetivos de Pequim, que desafia a hegemonia dos Estados Unidos e é alvo de sanções do Ocidente.
O tema já foi defendido por Lula em diversas oportunidades. Em discursos, o petista aponta o dólar como um dos culpados pelo endividamento de países em desenvolvimento. “Por que todos os países são obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como paridade?”, disse Lula em Xangai, na China, em março de 2023.
Apesar dos discursos do mandatário brasileiro, dados da Secretaria de Comércio Exterior apontam o dólar como a moeda mais utilizada pelo Brasil em transações comerciais com outros países. Nos últimos cinco anos, 95% das exportações e 82% das importações brasileiras foram feitas com a moeda americana. Em seguida, o euro e o real ocupam, respectivamente, o segundo e terceiro lugar no ranking.
A libra esterlina (Reino Unido), o iene (Japão) e o renminbi (China) também estiveram entre as cinco principais moedas utilizadas pelo Brasil em importação e exportação no último ano. A utilização dessas, contudo, não chegou a 1% do total de transações realizadas ao longo desses cinco anos. Veja o ranking abaixo:
Brasil tem investido em transações com moeda chinesa
O Brasil tem buscado uma aproximação com a China e replicado o discurso do líder chinês, Xi Jinping, para utilizar moedas locais para as transações comerciais entre os dois países, em detrimento do dólar. No ano passado, ambos completaram a primeira operação comercial somente com moedas locais: o yuan e o real.
O processo aconteceu após uma negociação que teve início depois que Lula assumiu seu terceiro mandato. Em março de 2023, a China autorizou a subsidiária brasileira do Industrial and Commercial Bank of China (ICBC, ou Banco Industrial e Comercial da China) a fazer a compensação direta de yuan para real, viabilizando operações comerciais e financeiras diretamente entre as duas moedas. Ainda neste ano, o Brasil deve receber remessas de financiamento do Banco dos Brics em yuan. As quantias bilionárias são para financiar obras de infraestrutura no país.
O Brasil também submeteu, por meio da Companhia Paulista de Força e de Luz (CPFL Energia), o projeto de Atualização e Expansão da Infraestrutura de Distribuição de Energia, no estado de São Paulo, para análise do Banco dos Brics. A proposta solicita o valor de US$ 200 milhões para ser pago em yuans.
“O Projeto visa garantir que os residentes e empresas sediadas na área de concessão continuem a ter acesso a serviços de eletricidade de qualidade e fiáveis”, informa a descrição do projeto no site do Banco dos Brics.
O financiamento em moeda chinesa evidencia a disponibilidade do Brasil em fazer transações e negociações em yuans. Com essa possibilidade, novos projetos submetidos para análises do Banco dos Brics também podem receber quantias em moeda chinesa.
Para o ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo de Freitas, o Brasil precisa tomar cuidado com essas investidas da China. Ele explica que, pelo fato de o país asiático possuir um regime de governo autocrático e sem transparência, dificilmente o yuan será consolidado como uma moeda internacional, como o dólar. Nesse sentido, pode ser difícil que os países consigam usar suas reservas dessa moeda em negociações com outros países.
“O que pode acabar acontecendo é essa moeda ser utilizada para negociar apenas com a China”, avalia o analista. Ele explica ainda que, ao acumular mais yuan em suas reservas, os países acabam ficando mais dependentes de Pequim e podem correr riscos ao estarem sujeitos ao mercado sem transparência da China.
“A China tem utilizado os Brics, o Brasil e a Rússia para colocar o yuan em circulação e expandir sua operação no mundo. Mas é preciso tomar cuidado com esse processo”, diz Freitas. Para que o yuan se torne uma moeda conversível, seria necessário sua ampla aceitação nos mais diversos organismos econômicos mundiais, o que ainda não é uma realidade, de acordo o especialista.
“É muito bom economicamente ter uma moeda que é aceita por todo mundo e que pode ser usada em qualquer lugar. Essa é uma ambição, nesse momento, natural para um país que já é um potência econômica e militar. Mas é preciso ressaltar que a China está longe de alcançar isso por não ter um governo transparente”, pontua.
O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, explica ainda que o padrão dólar para correntes comerciais facilita as negociações entre os países. “A maioria dos países prefere negociar em dólar ou em euro, pois essas são moedas conversíveis (que não têm restrições no mercado de câmbio internacional), enquanto o rublo e o yuan são moedas inconversíveis (dificilmente aceitas para câmbio)”.
Trump ameaça desdolarização com sanções
Os diálogos sobre a desdolarização avançaram no âmbito do Brics, que desde o início deste ano passou a ser composto também por Arábia Saudita, Emirados Árabes e Irã. Alvo de sanções do Ocidente, China e Rússia – os maiores países do bloco – têm feito acordos para realizar comércios sem a moeda norte-americana. Recentemente, os dois países emitiram um alerta a países do Oriente Médio para aceitar yuans chineses e rublos russos na venda de petróleo — processo que a China já utiliza.
A estratégia é uma forma de aquecer a economia desses países, já que têm esbarrado em embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos e membros da União Europeia. A iniciativa, contudo, foi contestada recentemente pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que tentará voltar à Casa Branca em 2025.
Conforme revelou a Bloomberg na última semana, conselheiros de Trump estão discutindo formas de aplicar sanções a países que não utilizarem o dólar em transações comerciais. Os Brics, que já sugeriram inclusive a criação de uma moeda própria para transações entre os membros do bloco, entraram na mira do ex-presidente. Entre as possibilidades estudadas pela equipe do republicano estão o controle de exportação, encargos e tarifas, segundo informações do jornal de finanças norte-americano.
Apesar das ameaças, especialistas avaliam que as declarações de Trump dificilmente teriam um efeito concreto, já que podem atrapalhar os planos econômicos do país. Por outro lado, é um recado às ambições políticas da China, que busca se projetar mundialmente como um país capaz de afrontar os Estados Unidos.
Lula tem buscado aproximação com a China
Desde que assumiu para seu terceiro mandato, o presidente Lula tem apostado em uma aproximação com a China. Os discursos contra as instituições internacionais e a hegemonia do dólar, ecoados principalmente por Xi Jinping, fazem parte da ótica sul-globalista pautada pela China – da qual Lula é entusiasta.
Alvo de sanções dos Estados Unidos e União Europeia, a China tem investido na aproximação com países da América Latina e da África, sobretudo governos autoritários que também sofrem repressões do Ocidente, como a Rússia e a Venezuela. O Brasil entrou no radar de Pequim devido à semelhança de discursos e o desejo de fazer do chamado Sul Global uma liderança mundial.
Atualmente, a China é o principal parceiro econômico do Brasil. Lula e o Partido dos Trabalhadores, contudo, tentam expandir essa aproximação para o setor político. No último ano, delegações do PT viajaram para a China e membros do Partido Comunista Chinês vieram ao Brasil para assinar acordos de integração com o PT.
Essa aproximação tem sido observada com cautela por países do Ocidente, sobretudo após Lula fazer acenos à Rússia no contexto da invasão do país à Ucrânia, que culminou na guerra que as duas nações enfrentam desde fevereiro de 2022.
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