Após o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), entregar nesta quarta-feira (24) aos presidentes da Câmara e do Senado um extenso documento de 300 páginas contendo 499 artigos que compõem o projeto do governo para regulamentar a reforma tributária, desencadeou-se também uma disputa por protagonismo entre Legislativo e Executivo sobre o tema.
Enquanto a promulgação da
emenda constitucional 132/2023 no fim do ano passado, delineando diretrizes do
novo sistema tributário nacional, veio da iniciativa do governo, que incluía
projetos previamente debatidos no Congresso e que sofreu significativas
modificações devido à pressão de lobbies, a fase conclusiva da reforma
evidencia agora o embate entre os esforços do Planalto para assegurar receitas
e a intensa atuação das frentes parlamentares voltadas à defesa de salvaguardas
de setores.
À medida que as Casas do Parlamento, especialmente a Câmara, têm avançado consistentemente na definição de pautas de votação e na captura de recursos do Orçamento da União, a reforma tributária está prestes a consolidar uma presença ainda mais marcante do Legislativo na formulação de políticas públicas e na agenda regulatória. Essa condição de autoridade final sobre temas que antes estavam quase que só sob alçada da Presidência da República e dos ministérios é vista por analistas ouvidos pela Gazeta do Povo como o semipresidencialismo na prática.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), assegurou que o Congresso entregará a regulamentação da reforma ainda este ano, apesar do calendário apertado devido à campanha eleitoral. Tanto ele quanto o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), estão determinados a agilizar a tramitação dos projetos de lei complementares. No Senado e na Câmara, os relatores dos projetos não serão os mesmos que conduziram a emenda constitucional da reforma, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) e o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
A proposta do governo normatiza as alíquotas de sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal e que substitui os atuais PIS/Pasep e Cofins; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja responsabilidade será compartilhada entre estados e municípios e que entra no lugar do ICMS e do ISS.
Considerando que esses projetos têm origem no Executivo, o processo de tramitação se inicia na Câmara. Dentre os temas de grande relevância a serem debatidos, destacam-se o funcionamento dos novos impostos, a definição da alíquota geral (estimada em torno de 27%), os produtos da Cesta Básica que serão isentos de taxação e a implementação do mecanismo de cashback, para a devolução do dinheiro pago em impostos. Além disso, está previsto que Haddad encaminhe uma segunda proposta de regulamentação ao Congresso nas próximas semanas.
Reforma pode evidenciar o semipresidencialismo
Segundo o cientista político e diretor da Action Consultoria, João Henrique Hummel, a aprovação da reforma tributária no ano passado coincide com um momento crucial de embate entre dois sistemas de governo: o presidencialismo de coalizão, que beneficiou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos dois primeiros mandatos, e o emergente semipresidencialismo, que tem gradualmente adquirido concretude por meio de medidas que fortalecem influências e prerrogativas do Legislativo.
Para o especialista, ao longo de três décadas de debates, a reforma tributária exemplifica a transição para um Legislativo fortalecido, capaz de impulsionar a sua própria agenda. Neste rumo, a garantia de acesso aos recursos das emendas impositivas e a autonomia na definição da pauta legislativa colocaram o governo em uma posição subordinada aos interesses dos deputados e senadores.
Esse processo teve início, segundo ele, com a aprovação do Código Florestal em 2012, quando, pela primeira vez, o Executivo teve que negociar diretamente com o Congresso sobre um tema de abrangência nacional, contornando a sua própria burocracia ministerial.
Frentes parlamentares se anteciparam ao governo
Esse novo momento pode ser
representando pelo elevado grau de articulação dos grupos de interesse no
Congresso. Antes mesmo de o governo dar os próprios passos para regulamentar a
reforma tributária sobre o consumo, uma coalizão inédita de 24 frentes
parlamentares protocolou um conjunto de 13 projetos de lei complementares para
regulamentar a emenda constitucional promulgada no ano passado. Os textos foram
apresentados na quarta-feira (17), uma semana antes da proposta de Haddad. A emenda
constitucional da reforma prevê cerca de 70 pontos que dependem de detalhamento
legislativo posterior.
Entre os pontos abordados pelas frentes parlamentares estão algumas das maiores polêmicas que cercarão o debate da regulamentação da reforma tributária, como a incidência do Imposto Seletivo (ou do pecado), a aplicação das regras de transição sobre contratos de longo prazo, os produtos contemplados na Cesta Básica Nacional, as alíquotas diferenciadas do Imposto sobre o novo Valor Adicionado (IVA) dual e os regimes especiais para atividades específicas, como combustíveis e lubrificantes, setor financeiro e operações com bens imóveis.
As frentes engajadas são: Pelo Livre Mercado (FPLM), Inovação e Tecnologias em Saúde para Doenças Raras (iTec Raras), Mineração Sustentável (FPMIN), Empreendedorismo (FPE), Brasil Competitivo (FPBC), Mulher Empreendedora (FPMEmp), Gestão de Resíduos e Economia Circular (FPRS), Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (FPDUS), Saneamento Básico (FPSB), Portos e Aeroportos (FPPA), Comércio e Serviços (FCS), Petróleo, Gás e Energia (FREPPEGEN), Indústria (FPMI), Saúde (FPSaúde), Etanol, Materiais de Construção (FMC), Inclusão e Qualidade na Educação Particular (FPEduQ), Indústria de Máquinas e Equipamentos (FPMAQ), Defesa e Valorização da Produção Nacional de Uvas, Vinhos, Espumantes, Sucos e Derivados, Defesa do Setor Coureiro-Calçadista, Hotelaria Brasileira, Logística e Infraestrutura (FRENLOGI), Centros Urbanos (FPCeurb), e Agropecuária (FPA).
Congresso deve avançar em políticas públicas
Arthur Wittenberg, professor de Relações Institucionais e Políticas Públicas do Ibmec-DF, considera inevitável que o Congresso tenha o protagonismo na regulamentação da reforma, dada a ampla articulação e debate com a sociedade civil por meio das audiências públicas e pela atuação das frentes parlamentares engajadas.
“Se os parlamentares optarem por normas autoaplicáveis, que entram em vigor após a promulgação sem necessidade de novas normas para serem implementadas ou compreendidas, eles também irão se impor em relação ao Executivo”, acrescenta. Situação parecida ocorreu na maior parte do Código Florestal, por exemplo.
O professor lembra que a reforma tributária e a sua regulamentação configuram predominantemente um tipo de política pública redistributiva, na qual há reorganização de recursos e vantagens entre setores envolvidos, gerando resistência dos que perderão benefícios e apoio dos que serão beneficiados.
“O Executivo deve continuar a ser pressionado pelos diversos grupos de interesse, mas, a partir de agora, a disputa passa a ressoar mais no Congresso. Não há muita alternativa para o governo”, afirmou Wittenberg.
Disputa por mais poder começou na Constituinte
O professor e cientista
político Elton Gomes dos Reis argumenta que o aumento do envolvimento do
Congresso na definição de verbas, pautas e políticas públicas nos últimos anos
reflete a busca da elite parlamentar brasileira por maior protagonismo, uma tendência
que remonta à Assembleia Nacional Constituinte. No entanto, ele observa que a
implementação do modelo clássico de semipresidencialismo, adotado na França e
em Portugal, apresentaria desafios consideráveis no Brasil.
“O que temos
testemunhado ao longo dos anos no país é uma progressiva diminuição do poder
dos presidentes em favor do Congresso. A necessidade de formar e administrar
amplas coalizões torna a governabilidade cada vez mais dispendiosa, requerendo
alocação de verbas, distribuição de cargos e concessão de favores políticos
diversos para a aprovação de legislação alinhada com os interesses do
Executivo”, explicou Reis.
Após a derrota do parlamentarismo durante a elaboração da Constituição, grandes escândalos de corrupção a partir dos anos 2000 minaram o prestígio de partidos influentes como o PT, PSDB e MDB, elevando o custo do apoio parlamentar.
A dificuldade em adotar o semipresidencialismo no Brasil, segundo Reis, reside no perfil do parlamento brasileiro, caracterizado por uma atuação muitas vezes centrada em interesses locais, e, também, pelo ainda elevado número de partidos sem uma clara definição ideológica.
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