O que vinha acontecendo como uma revolução silenciosa está prestes a virar guerra aberta. Em jogo, os depósitos de centenas de bilhões de reais de correntistas brasileiros, principalmente produtores rurais, micro e pequenos empresários, que encontram cada vez mais nas cooperativas de crédito uma alternativa ao sistema bancário convencional.
O cooperativismo saltou de uma participação de 3% no sistema financeiro nacional, em 2019, para praticamente 7% no ano passado. E continua crescendo a taxas de quase 30% ao ano. Atualmente, já são mais de 15 milhões de cooperados, acima de 80% como pessoas físicas.
Boa parte dessa expansão tem ocorrido em localidades remotas, de pouco interesse para os bancos de varejo, e também entre micro e pequenos empreendedores com dificuldade de dar garantias para acesso ao crédito. Segundo o Banco Central, em 2022 as cooperativas de crédito se expandiram para mais 174 municípios, enquanto, no mesmo ano, 85 municípios deixaram de ser atendidos por agências e postos dos bancos. Naquele ano, a quantidade de municípios onde a cooperativa de crédito era a única alternativa presencial de serviços financeiros chegou a 331.
Na visão dos bancos, contudo, estaria havendo concorrência desleal. Representantes do setor teriam sugerido ao ministro da Fazenda que as cooperativas comecem a pagar impostos como qualquer outra empresa. Isso poderia gerar cerca de R$ 10 bilhões a mais por ano para o governo. Em nota à Gazeta do Povo (veja mais abaixo), a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) negou essa articulação.
Atos cooperativos não são tributados no sistema atual
Pela legislação brasileira, os chamados “atos cooperativos” não são tributados. Trata-se de todas as transações entre as cooperativas e seus associados e das cooperativas associadas entre si. O recolhimento dos impostos ocorre apenas quando os negócios envolvem terceiros ou na ponta, diretamente dos cooperados.
Para os bancos, na prática as cooperativas de crédito seriam concorrentes diretos que oferecem os mesmos serviços e brigam pelos mesmos clientes. Mas com a vantagem de não pagar os mesmos tributos do sistema bancário, como 25% de Imposto de Renda, 20% de Contribuição Social sobre Lucro Líquido, 4,65% de PIS/Cofins e até 5% de ISS.
O sistema financeiro nacional, que totalizou em 2023 um volume de crédito de R$ 5,8 trilhões, ainda é amplamente dominado pelos bancos, que detêm 90% de participação. A velocidade do avanço das cooperativas de crédito, contudo, já foi classificada de “revolução silenciosa” pelo diretor financeiro e de crédito digital para micro, pequenas e médias empresas do BNDES, Alexandre Abreu.
A maior dessas cooperativas, o Sicredi, já se tornou o principal repassador de recursos do BNDES. Detém, também, o posto de liderança na carteira de agronegócio entre os bancos privados, com R$ 84 bilhões, atrás apenas do Banco do Brasil.
Ativos das cooperativas de crédito crescem 28,5% ao ano
Dados do Banco Central apontam que o crescimento dos ativos totais
do sistema cooperativo de crédito é de 28,5% ao ano, e atingiu R$ 590 bilhões
em 2022 (último dado disponível), enquanto o restante do sistema financeiro
cresce 11% ao ano.
Tal desempenho incomoda a concorrência, que estaria buscando meios
de estancar a perda de clientes. “Acho que é uma reação de baixo, de alguma
região em que algum superintendente de banco foi cobrado porque perdeu share de
mercado, e daí alguém pegou isso e construiu essa narrativa de competição
desigual, que é ofensiva e não faz sentido”, reage Manfred Dasenbrock, presidente
da Central Sicredi PR/SP/RJ.
Para Dasenbrock, é falsa a alegação de que as cooperativas não contribuem com a arrecadação de impostos. “O associado já é tributado, como é que vai tributar de novo? Eu sou associado da cooperativa lá de Medianeira (PR). Tenho que fazer declaração de Imposto de Renda e, se faço operação de crédito, pago IOF, pago PIS, pago todos os tributos. O benefício que eu tenho de ser sócio na cooperativa é que eu participo do resultado. No banco, eu não participo de nada, não sou acionista, não tenho nada”, argumenta.
Impor sobre as cooperativas a mesma régua aplicada aos bancos acabaria levando à bitributação, segundo o executivo do Sicredi.
Febraban nega que teria procurado o governo
Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Febraban informou que “não dirigiu pleito a nenhuma autoridade governamental para tratar especificamente da carga tributária de segmentos da indústria financeira”. Afirmou também que é favorável ao aumento da competição no setor, e a estimula, em todos os níveis. Por outro lado, manifestou preocupação com os termos dessa concorrência.
“A Febraban, historicamente, defende a importância de que as
regras, não só os regimes tributários, sejam iguais para todos os competidores
que prestam o mesmo tipo de serviço e que tenham portes semelhantes, sejam
bancos já estabelecidos ou novos entrantes. Dessa forma, evita-se o
desbalanceamento e o desequilíbrio nas relações concorrenciais, com atores com
atividades similares sendo submetidos a regras diferenciadas”, disse a
federação.
A Frente Parlamentar do Cooperativismo (Frencoop), que reúne 325 parlamentares, promete reagir a qualquer investida dos bancos para mudar a legislação.
Cooperativa não é empresa, diz Arnaldo Jardim
“Cooperativa não é empresa. Tem distribuição de sobras e
outros instrumentos que a diferem. O cooperativismo de crédito irriga a
economia; com ele, o crédito chega de fato ao pequeno, entre tantos outros
pontos positivos que o setor promove em nosso país. Vamos mobilizar todas as
forças aliadas ao cooperativismo para evitar essas medidas”, assegura o
deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), presidente do bloco e que foi relator da
Lei Complementar 130/2009, que incluiu as cooperativas no sistema financeiro
nacional.
Vice-líder da Frencoop e associado à Credicoamo, no Paraná, o deputado federal Sergio Souza (MDB-PR) aponta que o retorno obtido pelas cooperativas, chamado de sobras, não escapa da tributação, mas se dá ao nível de cada cooperado. Tributar isso, diz ele, “não tem chances de prosperar no parlamento”.
Souza destaca o benefício socioeconômico regional de todas as cooperativas, não só as de crédito. “Veja a cooperativa C.Vale, de Palotina (PR), por exemplo. O peixe e o frango produzidos naquela região estão no mundo inteiro. Até no Japão já encontrei frango do Paraná. Um negócio desse dá orgulho. Isso é o sistema cooperativo, que produz riqueza e desenvolvimento. O dinheiro fica e gira”, sublinha o deputado.
“Na minha opinião, os bancos, que ficaram muito confortáveis na reforma tributária, têm que buscar resolver o problema deles, e não criar problema para os outros. Não podem querer pichar a casa do vizinho que está bonita. É diferente, isso está na Constituição. Não vamos deixar passar no Parlamento nada que venha a desmontar esse sistema. Se os outros quiserem entrar no sistema, é só formar uma cooperativa e vão ter o mesmo tratamento”, argumenta.
Governo ávido por arrecadação preocupa
Do ponto de vista jurídico e legal, não haveria objetivamente nada
de irregular na atuação das cooperativas e sua forma de tributação. Isso não
quer dizer que elas estejam blindadas. Principalmente porque, além do lobby dos
bancos, o governo federal não esconde estar atento a toda e qualquer
possibilidade de aumentar a arrecadação, para atenuar o déficit público.
“Temos o contexto de um governo ávido por arrecadação. Em toda a matéria tributária em discussão no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e no STF [Supremo Tribunal Federal], o argumento do governo é sempre o mesmo. O critério deles, de quanto vai se perder de arrecadação, está sempre acima da discussão jurídica”, diz o professor e tributarista Elton Baiocco, do escritório Farracha de Castro Advogados.
“Mas a concepção jurídica é totalmente equivocada. Não há como promover essa tributação de PIS e Cofins das cooperativas de crédito porque elas não prestam serviços a terceiros. E as receitas que elas têm provenientes de outros serviços, fora do chamado ato cooperativo, já estão sujeitas a tributação. Não há benefício ou concessão que o governo faça. Simplesmente é a regra jurídica vigente”, prossegue Baiocco.
Contatado para explicar se alguma revisão na tributação das cooperativas está sendo considerada, o Ministério da Fazenda informou que não comentará o assunto.
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