Fazer uma barragem
para armazenar água da chuva e dos rios, como uma espécie de poupança para
enfrentar períodos de estiagem, é uma intervenção legítima dentro da
propriedade rural ou deve ser coibida e até criminalizada por agredir o meio
ambiente?
Pelo regramento brasileiro atual, mexer nas Áreas de Preservação Permanente (matas ciliares dos cursos de água) só é possível quando é necessário à execução de obras ou projetos de utilidade pública e interesse social, devidamente autorizados por órgão federal. Projetos de irrigação não se enquadram como de utilidade pública e, portanto, acabam sendo vetados pelos órgãos de licenciamento.
“A irrigação, muito mais do que problema, é solução para produzir alimentos sem expandir nossas fronteiras. É preciso buscar um equilíbrio, que passa por controles, estudos, monitoramentos, mas também por fazer uma outorga da água mais inteligente”, defende Everardo Mantovani, professor da Universidade Federal de Viçosa e diretor da Associação Brasileira de Irrigação e Drenagem (Abid).
No Congresso Nacional tramitam dois projetos de lei, já aprovados em suas casas de origem, que reconhecem a utilidade pública dos projetos de irrigação em áreas de APP. Tanto o PL 1.282/2019, no Senado, como o PL 2168/2021, da Câmara, condicionam a formação das barragens à observação das regras do licenciamento ambiental, outorga de recursos hídricos e inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Na prática, havendo um barramento, a área de preservação ambiental inundada se deslocaria para as margens do lago formado.
Esquerda vê irrigação como “ataque ao Código Florestal”
Dentre políticos de esquerda, ONGs e ambientalistas, as propostas são classificadas como “liberação para o desmatamento” e “ataque ao Código Florestal”.
A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiental Natural (Agapan) se opôs ao projeto de lei estadual aprovado no início do mês, que simplifica as regras para projetos de irrigação. “Ruralistas trabalham no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa para descaracterizar a legislação ambiental”, afirmou a ONG.
“Como pode ser razoável pensar em interferir nesse sistema natural complexo e já tão escasso para criar reservatórios artificiais? Trata-se de uma intervenção antrópica destrutiva e mal posicionada em um local que deve ser entendido com um santuário ecológico de maior valor”, afirmou em nota a Agapan.
Quando os projetos que visam conceder utilidade pública à irrigação começaram a tramitar em Brasília, em 2021, a ONG Instituto Socioambiental (ISA) emitiu nota técnica contestatória. Afirmou que “a flexibilização da delimitação e do regime de proteção das áreas de preservação permanente, especialmente para fins de barramento de cursos d’água, pode ocasionar novos desmatamentos, agravar as crises hídrica e energética e conflitar com os instrumentos de regulação, planejamento e gestão dos recursos hídricos brasileiros”.
Brasil pouco aproveita o potencial de irrigação
Apesar de concentrar 13,8% dos recursos hídricos do mundo, o Brasil é um dos países que menos aproveitam o potencial de irrigação de suas lavouras. A distribuição da água, contudo, não é uniforme. A região amazônica, habitada por 5% da população, detém 80% da disponibilidade hídrica. Enquanto globalmente 40% dos alimentos são produzidos sob irrigação, no Brasil esse índice é de 20% (FAO 2017).
Apenas 9,2 milhões de hectares são irrigados no país, uma parcela pequena do total de 342 milhões de hectares irrigados no mundo. Dos 630 bilhões de metros cúbicos de água reservados no Brasil, 92,7% estão em lagos artificiais para geração de energia hidrelétrica.
Um parecer da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) aponta que as restrições ambientais são, atualmente, o grande desafio do agronegócio brasileiro, que se agrava quando o assunto é a constituição de reservatórios de água para irrigação. No entanto, diz a FPA, “a prática de reservação promove a disponibilidade hídrica contínua pela acumulação de água da estação chuvosa que será utilizada para atender a demanda no período de estiagem”.
Além de proporcionar a regularização da vazão dos corpos hídricos, as lagoas favoreceriam a infiltração de água até o lençol freático, evitando enxurradas e desbarrancamentos. E minimizariam ainda os conflitos pelo uso dos recursos hídricos ao propiciarem o uso somente da quantidade suficiente para atender às necessidades dos cultivos.
Centro-Oeste tem maior potencial em curto e médio prazo
O estudo “Agricultura Irrigada no Brasil: recursos hídricos e sustentabilidade”, publicado pela Esalq/USP, em 2022, aponta um potencial total de 55,85 milhões de hectares irrigáveis no país.
O potencial efetivo, de curto e médio prazo, é estimado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 13,7 milhões de hectares, metade sobre áreas de pastagens hoje subaproveitadas. Dentre as regiões, o Centro-Oeste se destaca com 45% desse potencial, seguido pelo Sul, com 31%, e Sudeste, com 19%.
“Nós subutilizamos tanto o potencial da irrigação, como um todo, como também o potencial de construção de pequenas barragens para fazer reservação”, diz Luiz Henrique Bassoi, pesquisador da Embrapa Instrumentação, em São Carlos (SP).
“Se o barramento for feito com critérios técnicos, de modo que não prejudique quem está a jusante [abaixo], que faça reservação de água segura, que não implique em possibilidade de rompimento, que tenha vertedouro para ocorrência de chuva excessiva – isso é bom senso. Significa aumento de produtividade, aumento de emprego, de renda e de recolhimento de impostos”, enfatiza Bassoi.
A construção de barragens, no Brasil, é acompanhada de controvérsias ambientais há décadas, devido ao impacto dos grandes lagos criados por usinas hidrelétricas. Desastres ambientais em barragens de rejeitos de minérios de ferro, como Brumadinho, contribuíram para tornar o tema ainda mais sensível, mesmo quando se trata de pequenas lagoas ou açudes nas propriedades.
Projetos terão de cumprir condicionantes ambientais
Os defensores dos barramentos dentro das propriedades rurais dizem que não se trata de propor uma legislação mais permissiva ou que afaste critérios técnicos.
“É importante salientar que o licenciamento ambiental e a outorga pelo uso da água serão exigidos, assim como apontarão todas as condicionantes para minimizar os impactos ambientais”, diz a deputada Coronel Fernanda, relatora do PL 2168/21 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Mantovani reforça: “Quando se pede utilidade pública, não quer dizer que o produtor vai lá fazer de qualquer jeito. O órgão ambiental vai autorizar e ver se está em conformidade com as diretrizes daquela bacia”. Dentre pontos técnicos a ser analisados, estão a variação da disponibilidade hídrica local, o impacto nos ecossistemas aquáticos e o risco de lixiviação de fertilizantes e defensivos químicos.
Em 2011, o deputado Aldo Rebelo, relator do Código Florestal na Câmara, já rebatia críticas à nova legislação, argumentando que as exigências a que os produtores brasileiros seriam submetidos não tinham paralelo.
“Não existe APP [Área de Proteção Permanente] no país do Greenpeace, a Holanda. Qualquer cidadão pode ver a calha dos rios holandeses e verá que a mata ciliar dos rios é de beterraba, de uva, de couve-flor – tudo menos floresta. É tudo cultivado”, apontou à época.
Em palestras sobre o tema, Mantovani costuma citar palavras do ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, no artigo “Água, um bem fundamental”: “Não se pode permitir o uso indiscriminado de um bem tão maravilhoso. Mas também não se deve inviabilizar o aumento da produção de alimentos. O equilíbrio não é tão difícil”.
Ciclo hidrológico: água da irrigação não vai embora
Um tabu gira em torno do fato de a agricultura responder por 70% da água doce consumida no país. De fato, a atividade é a que mais utiliza recursos hídricos, sendo totalmente dependente da água, seja da chuva ou irrigada, para produção de alimentos. No entanto, mais de 99% da água das plantações retorna ao ciclo hidrológico pela evapotranspiração. E apenas 0,7% da água disponível nos rios, atualmente, é utilizada para irrigar cultivos.
Não faltam exemplos históricos de outros tabus ambientais, no Brasil, que perduraram por muito tempo, mas que hoje são vistos apenas como tabus do passado. Bassoi, da Embrapa, lembra dois casos. O da transposição do Rio São Francisco e o do etanol como combustível verde.
“Trabalhei na Embrapa no semiárido em Petrolina por vinte anos, durante o auge da discussão da transposição do rio São Francisco. Alguém mais questiona, hoje, a viabilidade técnica da obra? Pode-se questionar o valor, mas não a viabilidade”, recorda o pesquisador.
“Quanto ao Proálcool, hoje nós vemos gente batendo no peito e afirmando que o país tem um combustível verde, uma fonte renovável de energia. Mas na década de 1980, a abordagem era de que a cana-de-açúcar destrói o solo, tira espaço do alimento, enriquece uma pequena parte da população”, complementa.
Apesar de aprovados em suas casas de origem, na Câmara e no Senado, não há, ainda, previsão de votação em plenário dos projetos que tratam do reconhecimento de projetos de irrigação como de utilidade pública no país.
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